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Quem não gosta de samba... [Jean Marcel]

C. NASCIMENTO
Quem não gosta de samba...

Rio de Janeiro. Num dos morros da cidade...

– Vamos, dona Maria Eugênia, apressa esse passo que o ensaio já deve tá começando...

– Calma, Odeti, nunca vi uma ladeira como essa... Que horror... Não acaba nunca! Se eu subir mais um pouquinho acho que vou encontrar o gigante do João e o pé de feijão! Por que vocês não colocam uma escada rolante aqui nesse morro? – enxugando a testa com um lenço Armani. 

– Ué, madame, já cansou? Não é a senhora que faz esteira todo dia?

– Faço... mas não de salto alto! Aff... Eu juro que trocaria de bom grado meu anel de safira por uma garrafa de gatorade! 

– Pronto, pronto... já estamos chegando, patroa!

– Não é que é mesmo?! – sorriu, encostando a mão em concha no ouvido, enquanto seguia caminhando, só que agora aos pulinhos – escuta só, Odeti... já to até ouvindo a bateria. – eufórica com a experiência – Espera minhas amigas saberem que eu vim num ensaio de escola de samba... Vão morrer de inveja! Esse batuque... Tá ouvindo? Tum, Tum, Tum... Já fiquei toda arrepiada com esse som de tamborim! 

– Pois “desarrepia”, patroa, que isso não é batuque de tamborim coisa nenhuma, é som de metralhadora...  – Escutou mais alguns estampidos – AR15! –decretou.

– O que? É tiro? Aí meu Deus, eu disse para o Cláudinho que eu tava indo num chá de panela na casa da Martinha. Se eu aparecer em casa com uma bala perdida ele me mata! 

– O seu Luiz não sabe que a patroa tá aqui?

– Dr. Luís Cláudio! – censurou-a – Você disse: tiros? 

– Dá nada não, patroa. Esses tiros aí... É porque o povo tá feliz... É tiro pra comemorar o carnaval que ta chegando!

– Comemorar? Com tiro? Quanta testosterona, hein?! Não dava pra estourarem um champanhe como pessoas civilizadas? 

– Pronto, Patroa, chegamos! É ali ó... naquele galpão!

– Num barracão de madeira? Uau... Que pitoresco! – enxugando a testa – Bem rústico, eu diria... Do jeitinho que eu imaginei! – achando tudo interessantíssimo – Espia... – apontando para o céu – dessa vez tenho certeza que não são tiros... Olha só que lindo: estão estourando fogos de artifício. Ai, ai... Será que é porque eu cheguei? – ajeitando a maquiagem – Sua danada. Eu pedi sigilo. Você avisou que eu viria, né?! 

– Não, dona Maria Eugênia, esses fogos aí são pra avisar o pessoal que mora lá embaixo, os grã-finos da cidade, de que chegou “mercadoria” no morro...

– Avisar os grã-fino? Chegou mercadoria? Quem benção... Essa subida acabou com o meu salto alto! Meu reino por uma par de Havaianas... Mas tem que ser com Swarovski! 

*  *  *

Há muito que a Maria Eugênia queria conhecer de perto como vivia a “população desassistida". Achava intrigante como aquela gente tão "debilitada socialmente” conseguia encontrar inspiração para sambar... Queria entender de onde vinha toda aquela vontade de viver, aquela alegria contagiante. Seria o samba o “ópio do povo”? Aaah... Precisava experimentar isso! Mas como? Tinha uma amiga, a Carminha, que mora dois duplex à direita do seu, que certa vez saiu de destaque numa escola de samba só pra acompanhar um casal de amigos estrangeiros. Pra quê?! Não sabe os detalhes, mas comenta-se que só não deu separação porque o marido a fez jurar que nunca mais pisaria na avenida. Desde então, comenta-se, basta se aproximar o carnaval que o marido logo desencava alguma viagem pra bem longe do Rio de Janeiro. Curiosa, Maria Eugenia precisou de muitos brandys junto com a Carminha pra extrair uma confissão. Ouviu em segredo que é sim maravilhoso, mas que precisa tomar muito cuidado, “pois esse troço vicia”... Ouviu isso de uma Carminha com as faces coradas e o olhar furtivo. Pareceu que o assunto a fez ter pensamentos impróprios, ou, talvez, lembranças inconfessáveis. A amiga admitiu que até hoje está se desintoxicando, mas não está sendo fácil. Tanto que proibiu a criadagem de trabalhar com o rádio ligado, pois é só ouvir um batuque que já sente uma comichão nos quadris... Contou que no desfile, quando começaram a cantar o refrão do samba enredo, tal qual um mantra que vai se repetindo, um calorão tão grande tomou conta do seu corpo que ela praticamente entrou em transe e já não respondia mais pelos seus atos. Ao menos essa foi a justificativa que deu às amigas para ter arrancado a parte de cima da fantasia de rainha da corte e descido do carro pra sambar com o negão que segurava o cabo do som... Sorte dela que o marido, intelectual de esquerda bem sucedido, do tipo que só fuma charuto cubano, achou que tudo aquilo fazia parte do enredo... tipo: releitura da história da luta de classes no tempo do império... 

A Maria Eugênia ficou impressionadíssima com a história narrada pela Carminha, confidenciada entre um esticar de pescoço e inúmeros olhares periféricos, a fim de verificar se o marido dela não estava por perto ouvindo. Desde então, o relato não saiu mais da sua cabeça, principalmente o trecho em que a amiga comparou a experiência daqueles oitenta minutos atravessando a avenida a uma seção de sexo tântrico com o seu personal trainer.

– Eu vi estrelas! – contou. 

– Jura? Não diz! Mas é assim mesmo? Tudo isso? – deixou escapar –  “Eu preciso experimentar isso!”, decretou convicta, evidentemente referindo-se ao samba, porque personal por personnal, preferia o seu...

Com o carnaval se aproximando, entediada que estava com suas aulas de ioga e pilates, a Maria Eugênia se fez a mãe das perguntas: “Por que não?” Já estando convencida quanto a cometer o “delito”, só lhe faltava agora a oportunidade... Acontece, no entanto, que havia um óbice de ordem prática: Como ir até uma quadra de Escola de Samba? Ela simplesmente não circulava na cidade. Tinha nojo de pisar no chão. Andar na periferia, então... A bem da verdade, a Maria Eugênia só saía do seu super-hiper-mega condomínio privê na Barra da Tijuca para ir à Angra, no verão, ou a sua casa de campo, quando chegavam as estações mais amenas. Fora isso, saía de casa somente para ir e voltar ao aeroporto, já que até as compras deixava para fazer nas viagens ao exterior, que eram muitas e com destinos variados. Na sua visão, não havia aí nenhum preconceito com a cidade onde morava, simplesmente admitia não haver nenhum tipo de identificação entre ela e “essa gente”. Assumia para si uma autoclausura no seu condomínio fechado, como se estivesse de castigo por ser rica. Assim, no fundo, para a Maria Eugênia aquela ida ao ensaio da escola de samba era como um safári urbano. Aliás, era assim mesmo que enxergava o povo: uma fauna exótica e cheia de mistérios. E agora, nesse habitat tão distante da sua realidade, encontrava-se voluntariamente à mercê das orientações da Odeti, que fazia as vezes de guia da “excursão”... Ela mesma, a Odeti (com “i” e não ”e”, pra desespero dos patrões), sua cozinheira, que na hierarquia do lar dos Albuquerques, encontrava-se nada menos que no terceiro escalão, logo abaixo da emprega doméstica, que por sua vez era subordinada à governanta. No organograma dos Albuquerques a Odeti só rivalizava em falta de autoridade com o jardineiro e com o Cidão, o motorista das crianças.  Daí a enorme surpresa quando a “Dona Maria Eugênia”, que só lhe dirigia a palavra para discutir o cardápio do mês, abordou-a pessoalmente, quando aprontava um dos seus quitutes, com aquele que foi o pedido mais estranho que já recebeu de uma patroa: 

– Ei... Pssssss...

– Pois não, patroa – respondeu no reflexo, largando tudo o que fazia em cima da pia e praticamente se perfilando em posição de sentido. 

– Odeti – cochichando – eu quero experimentar!

– Mas me falaram que a senhora estava de regime! 

– Não, Odeti... outra coisa!

– O que então, madame? A senhora diz que eu faço! – só faltando bater continência. 

– Bem... – procurando as palavras – Na verdade não é uma comida... Eu queria... É que... Bom... Como posso dizer?

– A senhora tá me deixando nervosa, madame... 

– Eu quero ver qual é a sensação, Odeti! Até minhas amigas já experimentaram... Todo mundo fala que é maravilhoso... Você mora lá no alto do morro, certo?

– Unrum – confirmou com a cabeça. 

– Então... Não me peça pra ser mais explicita, Odeti...
Silêncio. Como um “orelhão” antigo, demorou pra “cair a ficha”. 

– Uhm... Entendi! Ô, patroa... Faz isso não! Larga dessa ideia... Eu não mexo com essas coisas, não! Isso não leva a nada...

– Só uma vez... Só pra saber como é... 

– Quem entra nessa, madame, não sai mais!

– É? Poxa... Então é mesmo tão bom assim... o samba? 

– Aaaaa... – retrucou aliviada – Então a senhora ta falando... do samba?

– Do que mais seria, Odeti? Já pensei em tudo! Quero que você me leve lá... Onde tudo acontece! 

– Na comunidade?

– Unrum, lá mesmo! – batendo palminhas de exicitação. 

– No morro? – confirmando se tinha entendido direito.

– É... algum problema? 

– Mas lá é chão-batido, patroa!

– Exatamente! – pausa para respirar fundo – Eu quero que você me leve lá... No morro! Eu gosto de tudo no original... Nada de imitação! Quando eu quero comprar um cristal da Boêmia... vou a Praga! Quando eu quero ver um musical... vou à Broadway! Quando quero comer um steak tartar vou a Paris. Então, quero que me leve até onde o samba está! – fez uma pausa e concluiu – mesmo que seja chão batido! 

E foi assim que ficou combinado. A data estava marcada. Nenhuma das duas tocou mais no assunto e os dias pareciam não passar para ambas, tamanha ansiedade que sentiam. De um lado a Odeti, que passou a gozar de regalias por conta da combinação; de outro, a Dona Maria Eugenia, que esperava a data com uma expectativa de criança aguardando a noite de Natal. De fato, quando o dia finalmente chegou, como cúmplices de algo muito grave que estava para acontecer, bastou uma troca de olhares para cada uma se dirigir aos seus aposentos e se arrumar para o pecado que cometeriam juntas. E lá foram elas, determinadas, resolutas, como duas contraventoras, patroa e criada seguindo ao encontro do samba “da gema”, o autêntico, tal e qual exploradores em busca da nascente de um rio. Desnecessário dizer que tal empreitada seria realizada no mais completo sigilo, pois se o Luís Cláudio de Albuquerque suspeitasse... Deixa pra lá... É bom nem pensar!

*  *  * 

– O ar deve estar desligado! – queixa-se a Maria Eugênia, soprando o próprio decote, assim que entra no salão e sente uma gota de suor percorrer sua espinha. – Quer dizer... Não que eu esteja reclamando! Eu tô adorando! – emenda imediatamente, após receber um olhar de censura, concluindo que para um lugar tão quente, eles só podiam mesmo se vestir com roupas tão sumárias.
Como se fossem amigas de colégio perambulando pelo pátio na hora do recreio, patroa e empregada circulavam de mãos dadas pelo salão superlotado. A Odeti, mulata escolada, invejada pelas amigas pelas curvas sinuosas do seu corpo e admirada pelos homens pelo mesmo motivo, seguia na frente, abrindo caminho, cumprimentando conhecidos, ajeitando o decote tomara-que-caia, distribuindo beijinhos e soltando fartos sorrisos. Logo atrás vinha a Maria Eugênia, caminhando altiva, ainda que puxada a reboque pela mão. Empregada e patroa rivalizavam na quantidade de olhares recebidos. Se a primeira herdou da natureza um corpo espontaneamente belo e sensual, a segunda o conquistou moldando-o a seu gosto com muitas horas de cirurgia e exercícios em academia, nessa ordem. Cada qual com seu encanto, ambas despertavam o mesmo interesse nos homens... 

– Vamos lá no bar pegar alguma bebida? – propõe a Odeti, esfregando as mãos, presumindo que tudo seria por conta da patroa.

– O quê? Atravessar o salão? – fitando apreensiva aquela aglomeração de gente estranha – O garçom não serve aqui? 

– Eu vou na frente, patroa!

– Será? Tá muito cheio! Vai ser impossível! 

– Ih, que nada! É fácil, tenho prática, madame! Eu imagino que estou num ônibus lotado e que tá chegando o meu ponto! É só ir pedindo licença... Desviando... Dando uma empurradinha aqui... outra ali...

– Que criativo! – animou-se a Maria Eugênia, que nunca pisou num lotação, mas adorou a ideia, pondo-se ela própria à frente, abrindo passagem antes mesmo de a criada apontar o caminho. 

– Excuse moi... Pardon... Excuse moi... – disparando na frente, toda serelepe, animada com tantas novas experiências.

– Calma, madame! Espera ai! – tentando, com dificuldade, acompanhar os passos da patroa – Acho melhor a gente marcar um lugar pra se encontrar caso a gente se perca! 

– Ih, Odeti... – gritando para ser ouvida – Nem se preocupa! Eu levanto o braço e fico abanando... O Luís Cláudio sempre me acha. Uma vez, nunca me esqueço, eu me perdi num outlet em Miami. Aí, o Luís Cláudio...

– “Aut” o quê, madame? 

– Ops! Tampando a boca com uma das mãos como quem acaba de revelar sem querer um segredo mundano. – Ai, ai, ai... Você jura que não conta pra ninguém?!

– Nem sei onde fica, madame. É na zona sul? 

– Esquece, Odeti! Se eu me perder, abano pra você, ok?

– O quê? A senhora abanar com essa quantidade de joias na mão? Nem pensar! 

– Odeti... – segurando o passo até que a criada se aproximasse o suficiente – Me faz um favor, sim?! Enquanto estivermos aqui, não me chama de senhora, tá bem?!

– Não? 

– Não! Aqui estamos como amigas. Além disso, veja só... Temos praticamente a mesma idade! Não é incrível? Você tem quantos anos, Odeti?

– 23! 

– Uhm... Pois então... eu também... praticamente isso!

– Ué, mas o Júnior não fez vestibular ano passado? 

– Eu tive o Júnior muito cedo, Odeti! Muito cedo... Senhora não, ok?! Senhora NÃO! E depois, nós duas estamos juntas nessa... Curtindo o “ambiente”... Só eu e você... Colegas dividindo esse nosso “segredinho”. Não tem por que me chamar de senhora aqui!

– Como chamo a senhora, então? Ops, desculpe... Como devo chamá-la? Amiga? 

A Maria Eugenia a olhou de alto a baixo. Avaliou em microssegundos a distância que as separava – Faz assim, não precisa me chamar, só abana! Come on, Odeti. Lets go!

E lá foram as duas desbravando o salão... 

*  *  *

De início a Maria Eugênia parecia ter total domínio da situação. Sob o par de sobrancelhas esculpidas a pinça, mais parecendo suaves acentos circunflexos, seu olhar naturalmente superior registrava tudo que acontecia alimentando ainda mais sua infinita curiosidade. Acontece, porém, que estando lá dentro, circula pra lá, circula pra cá, o jogo se inverteu e a Maria Eugênia, sempre tão poderosa, sem perceber se tornou uma presa fácil. Difícil saber se pelas caipirinhas de cachaça, que consumiu à farta, ou se pela emoção que sentiu com o pulsar da bateria... Se aquilo era um safári, ela se tornara a caça... Sendo fiel aos fatos, a verdade é que ela até que tentou resistir, afinal, a ideia era ir só pra dar uma olhadinha, matar a curiosidade, pra depois ter o que contar para a Rô e a Si, suas amigas invejosas que com ela formavam um trio inseparável. Contudo, bastou a bateria esquentar o couro para aquela vibração tomar conta da madame. Aí, nem mesmo a experiente Odeti conseguiu segurar o furor da Dona Maria Eugênia, represado por anos de “cativeiro”. 

– Odeti... – protesta a Maria Eugênia, já enrolando a língua.

– Que foi, madame? 

– Eu acho que passaram a mão em mim... – com uma indignação que não convencia.

– A senhora “acha”? O povo daqui tem “pegada”, madame! Se tivessem mesmo passado, a madame não teria dúvida! 

– Tá bom! Eu tenho certeza... Passaram! E não foi nem uma, nem duas... Foram cinco vezes!

– Cinco? 

– Unrum. Quando a gente tava indo, depois quando tava voltando, depois...

– Aonde, madame? 

– Aqui atrás, ó – mostrando as próprias nádegas.

– Não... Onde foi que isso aconteceu? Aqui no salão? 

– Unrum... – balançando a cabeça – Foi bem ali, ó... – apontando na direção de uns garotões dos seus vinte e tantos anos, que olhavam para as duas com olhares compridos – Acho que foi ali... Mas vamos passar de novo, só pra eu ter certeza!

– Não se preocupe, madame. Aqui é lugar de respeito! Se o bicheiro, que é o dono do morro, ficar sabendo que uma coisa dessas aconteceu aqui, manda castrar os engraçadinhos na hora! 

– Também não é pra tanto, Odeti... – Ajeitando o vestido e se pondo na direção da turminha, com uma falsa cara amarrada – Eu sou contra a violência!

*  *  * 

Apesar de o salão estar completamente cheio, a Maria Eugênia não passava despercebida. O cabelo armado, os brincos enormes e a pele muito branca, apesar dos sucessivos bronzeamentos artificiais, contrastavam com o que ela chamava de fauna local.

– Nossa, Odeti! – se abanando numa tentativa inútil de aplacar o calorão que sentia – Eu tava reparando... como aqui o “maestro” é, assim... digamos... mais viril, né?!

– Quem?

– O maestro! – A Maria Eugênia se referia ao Tonicão, mestre da bateria, que diferente dos franzinos e mirrados regentes que sempre vira na filarmônica, esbanjava um físico que no Teatro Municipal, só mesmo os carregadores de piano apresentavam. Além disso, estranhou que em vez do fraque usasse uma camiseta sem manga com o escudo da agremiação. No lugar da gravata borboleta, um correntão de ouro; e substituindo a elegante baqueta, um estridente apito com o qual comandava quase duzentos percursionistas. Surdos, caixas, repeniques, tamborins, agogôs, cuícas, reco-recos... Todos eles, como um improvável exército disciplinado, obedecendo aos sinais daquele inusitado comandante. 

– Madame... – observando a patroa sapatear involuntariamente no lugar ao ouvir o som da bateria – acho que está na hora da senhora aprender a sambar!

– Melhor não, Odeti! Não carece... 

– O quê? Vir aqui e não sambar é como cozinhar e não ficar com o melhor bife!

– Você faz isso? 

– Patroa, é o “chamado”! Não se pode negar o chamado do samba... Depois disso, a senhora vai chorar de emoção quando ouvir a cuíca gemer!

– Ai, Odeeeeti! Não fala assim... – corando as faces de vergonha. 

– Já sei, madame!... Pera aí, vou chamar o mestre dos mestres... O rei dos tamborins... O Valtão!

– Valtão? Ai, ai, ai... – A Maria Eugênia aprendeu rapidamente que enquanto os homens do seu mundinho, todos bem nascidos, tinham apelidos de Alfredinho, Carlinho, Haroldinho, Renatinho... Ali, naquele mundo “paralelo” que agora se descortinava diante dela, habitavam os Paulões, Nildões, Luizões... 

– É claro! Como não pensei nisso antes...?! – Odeti deu um tapa na própria testa – Ele já ensinou muita branca azeda a sambar... Tenho certeza que o Valtão vai adorar conhecer a senhora!

– E será que eu vou gostar de conhecer o Valtão? – franzindo a testa, pensou alto, visivelmente apreensiva. 

– O quê... o Valtão? Tá brincando...?!

Pode ter sido pelo crucifixo afundado na vasta cabeleira do peito ou, talvez, pelo palito de madeira equilibrando-se no canto da boca, ou, ainda, pela unha do dedo mindinho mais comprida que as demais...  O fato é que de início, avaliado a média distância, o Valtão definitivamente não causou uma boa impressão na Maria Eugênia. Menos ainda quando, ao ser apresentado, deu-lhe um beijo molhado que começou entre os dedos médio e anular da sua mão direita, capturada de surpresa e sem a concordância dela, e que só terminou próximo ao pescoço. 

– Tem certeza, Odeti? – sussurrou para a criada em tom de socorro, enquanto tentava desesperadamente desprender sua mão para se afastar.

– Madame, a senhora ainda não viu a baqueta dele em ação... 

– Ai meu Deus! – foi só o que deu tempo de a Maria Eugênia dizer antes de ser puxada pelo Valtão para o meio do salão.

Difícil descrever em detalhes, sem que algo escape, tudo o que aconteceu em seguida. Primeiro, pra surpresa da Maria Eugênia, ele acomodou a baqueta atrás da orelha e, andando à sua volta, tamborilou com os dedos o tamborim tal e qual o ritmo acelerado que se encontrava o coração dela... “Tum, tum... Tum, tum... Tum, tum...” Ficaram assim, num compasso binário, até se conhecerem melhor... Aí, quando ambos já estavam “batendo” na mesma cadência, foi aos poucos jogando um suingue na “conversa”, batucando mais maliciosamente, chamando-a para o seu ritmo... “Tum, Tq dum... dum, dum...” Sem se dar conta, aos poucos, a Maria Eugênia foi soltando o corpo, amolecendo a cintura, requebrando o quadril. Quando finalmente o Valtão retirou a baqueta de trás da orelha, fitou-a no fundo dos olhos e parou uma fração de segundo antes de sapecar o couro do tamborim. Nessa altura a Maria Eugênia já mordia o canto do lábio esperando ansiosamente pelo pior... ou melhor... 

Mais tarde, contando para as amigas confidentes, Maria Eugenia jura que naquele instante seu coração já estava batucando no ritmo da melhor das baterias...

Mesmo os que já estavam acostumados às performances do Valtão pararam para apreciá-lo, pois bastaram os primeiros passos para identificar que estava particularmente inspirado naquela noite. O que se viu foi um Fred Astaire do morro, que apesar da barriguinha de cerveja, conduziu a Maria Eugênia pelo salão como se os dois se conhecessem desde o parto. Tal qual novos amantes experimentando diferentes posições, o Valtão e a Maria Eugênia alternavam entre passos em pé, agachadas rebolativas e paradinhas sensuais. A coreografia era ditada pelo toque do tamborim, que praticamente ordenava o movimento seguinte, que era intuitivamente obedecido sem questionar. Apesar da quase indecente proximidade com que seus corpos sambavam, a ponto de um sentir a respiração do outro, na verdade ele tocava-lhe no máximo uma das mãos, nunca mais do que isso. Num Grand pas de deux que levantou poeira e chamou a atenção dos demais, as únicas interrupções eram somente para a Maria Eugênia buscar com a boca o canudinho de mais outra e outra caipirinha que amiga segurava... Mesmo assim, só o tempo suficiente para sorver o conteúdo do copo num só gole e refrescar a nuca com o gelo retirado do copo...

– E aí? – Perguntou a Odeti, já sabendo a resposta. – vamos embora? – puxando-a quase à força.

– Ahhh, não!... – Com o vestido colado ao corpo de tanto suor, protestou a Maria Eugênia, que como uma partner fiel tratou de voltar correndo para o seu Baryshnikov. 

Quando finalmente o Valtão devolveu-a aos cuidados da Odeti, a Maria Eugênia já não era mais a mesma... Pra dizer o mínimo, tinha um brilho diferente no olhar...

*  *  * 

O dia seguinte amanheceu como todos os outros para o chique condomínio da Barra da Tijuca. Ambos, Luís Claudio de Albuquerque e Maria Eugenia, marido e mulher, assistindo ao noticiário matinal pela televisão. Ele na sua poltrona, como de costume, dividindo a atenção do que quer que fosse, com a leitura do jornal. Assim, primeiro viu a cena na tv de relance, e só depois, fingindo desinteresse, é que prestou mais atenção: ensaio de escola de samba! Parece que era uma reportagem curta sobre os preparativos para o carnaval, algo como “esquentando os tamborins na terra de Momo”. A cena não podia ter sido mais bem escolhida, afinal, carnaval é a festa da “carne”... “Que mulherão!” falou pra si mesmo, sendo o único ouvinte daquele pensamento impuro. Por um momento até achou que conhecesse aquela dona, que sambando como se o mundo fosse acabar no dia seguinte, parecia querer desfrutar sem censura cada segundo disponível que ainda lhe restava até o momento do juízo final. “Uauuu... E dançando assim não será absolvida!”, sentenciou em pensamento. Boquiaberto, o Luís Cláudio, coisa rara, chegou a abaixar o jornal. No mesmo balanço acompanhava a “alegria” daquele quadril com movimentos involuntários da sua cabeça. Mesmo estando o tempo todo de costas para a câmera, impedindo que visse seu rosto, achou-a linda... Mais que isso: ele a desejou, olhando-a com olhos de cobiça. Contudo, infelizmente, foi impedido de uma avaliação mais profunda. Como se acordasse no melhor do sonho, teve que mudar de canal rapidinho quando percebeu a Maria Eugênia ao lado, lívida, fitando-o incrédula, sem dizer uma única palavra. O olhar da esposa alternava entre ele e a televisão... a televisão e ele... Estava chocada! Ao menos assim lhe pareceu.

“Será que ela leu meus pensamentos?”, apavorou-se, sempre tão retilíneo em tudo que fazia, inclusive na sua relação com a Maria Eugênia. Naquele breve momento em que a terra parecia ter parado de girar, ambos se julgavam flagrados: de um lado a Maria Eugênia temendo ser reconhecida; de outro, o Luís Cláudio, achando-se flagrado na sua infidelidade, mesmo que em pensamento. Um esperou a reação do outro... que não veio. Naquele impasse, engoliram em seco e nenhum dos dois falou nada por longos minutos, até que finalmente o silêncio foi quebrado pela Odeti, a cozinheira, anunciando que o café estava atrasado, mas que já iria traze-lo.

O desjejum transcorreu sem grandes percalços. Numa ponta da mesa o Luís Cláudio, que quando solteiro, embora a Maria Eugênia nunca tenha sabido, não só adorava carnaval como, inclusive, já tocara o bumbo numa agremiação do grupo de acesso. Do outro lado estava a Maria Eugênia, educada em colégio de freira e que, em nome da sua boa reputação, decidira secretamente que iria ligar mais tarde recusando o convite que recebera pra ser a rainha da bateria.

– Querida... – tirando-a dos seus pensamentos.

– Sim, Cláudinho... 

– Semana que vem é carnaval, certo? – querendo agradar.

– É mesmo? Nem lembrava! – fingindo nem se dar conta. 

– Pois então... Por que dessa vez a gente não faz diferente? Por que a gente não aproveita?

– Aproveitar? – se pondo de pé, mal acreditando no que ouvia. 

– É... – percebendo a alegria da esposa – Vamos curtir!

– Você acha, Cláudinho? – seu coração batendo mais rápido de alegria  – Posso te chamar de Claudião? 

– Isso... Vamos curtir! A gente pode aproveitar o feriadão e pegar na locadora umas óperas pra assistir em casa! Só eu e você! Fazemos uma imersão: Carmen, Don Giovanni, Il Trovatore... O que acha? Ein? Ein...?

– Ah, Claudinho... – sentando-se novamente, disfarçando o desânimo – Ah, Clau-di-nho...


Jean Marcel- Escritor, professor universitário, palestrante. É pai de dois adolescentes. Um leitor voraz. Eclético, escreve contos, crônicas, romances e infanto-juvenil. Possui o blog brisaliteraria.com

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