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Apologia do fracasso [José Castello]

Apologia do fracasso

O século 21 é obcecado pelo sucesso e pela vitória. Ganhar na bolsa, ultrapassar
marcas olímpicas, superar índices econômicos, bater recordes, levar vantagens nos negócios, ou na vida sentimental. Competir e vencer, vencer e vencer. Enquanto isso, o fracasso é visto com repulsa. Os fracassados, com desprezo. Torcedores querem apedrejar atletas derrotados. Os miseráveis são queimados vivos nas ruas. Endividados buscam empréstimos com o sentimento de que cometem um crime. Esquece-se, porém, que o fracasso é parte essencial do humano. Em um tempo no qual só se fala da vitória, é preciso afirmar a importância do fracasso. Mais que isso: lembrar que, tanto quanto a vitória, ele é parte essencial do humano.
Essas ideias não me deixam desde que recebi, de meu amigo Sérgio Pantoja, algumas palavras preciosas de Marguerite Duras, tiradas de seu "Escrever". Elas continuam a me agitar. Diz Duras: "Eu sei que quando escrevo há alguma coisa dentro de mim que para de funcionar, alguma coisa que silencia". Há, portanto, uma pane. Um fracasso. Sim: escritores estão sempre a rasgar rascunhos, a deletar parágrafos inteiros, cortar palavras. A abandonar livros e preferir o silêncio. A cada passo, um fracasso. Mas é de fracasso em fracasso (e não de vitória em vitória) que se chega, enfim, a um livro. Sempre pensei que, para um escritor, o importante não é "escrever bem", mas "errar bem". Agarrar-se a seu modo de se desviar da norma e do clichê. Descobrir sua maneira de fugir do correto e do "normal". Escritores devem sustentar seus erros, ou não conseguirão escrever para valer. Escritores não podem ter medo de fracassar e de perder.

Em nossa cultura, a ideia do sucesso está, quase sempre, associada ao masculino. O saldo polpudo na conta bancária, o bom desempenho sexual, a segurança da família: tudo se liga à figura do homem. Reflete Duras a respeito de sua escritura: "Eu deixo alguma coisa me possuir que provavelmente flui do feminino". Enquanto escreve, o escritor _ e isso independe de seu sexo anatômico _ conserva, sim, uma posição feminina. Assume uma posição "passiva": deseja que as ideias venham, com toda a força, e o penetrem. Ceder a uma ideia é, um pouco, acolher uma potência externa e dela gerar alguma coisa. Um filho, um livro. Dela arrancar energia e prazer. Escrever, Duras está certa, tem a ver com deixar-se possuir. Não deixa de ser uma possessão. É uma possessão. Embora, depois, o escritor a recubra com o manto nobre do trabalho intelectual.

Prossegue Duras - e eu continuo a lê-la no email de meu amigo Sérgio: "É como se eu retornasse a um país selvagem. Nada é combinado. Talvez, e antes de tudo mais, antes de ser Duras, eu seja simplesmente uma mulher". Há, no ato da escrita, algo que afeta o corpo. Que se passa no corpo _ da mulher (ainda que seja um homem), e não da escritora Marguerite Duras (ou seja de quem for). A escrita - o livro que temos nas mãos - não passa de um sintoma dessa experiência corporal, como uma tosse seca, ou um nódulo estranho. Há algo submerso, que empurra o escritor para sua escrita. Não chega a ser uma escolha: é um empurrão. O escritor é derrubado, se ergue, alguma coisa o derruba novamente, tenta se levantar de novo, algo o massacra. Só então percebe que está escrevendo. Mas o que leremos depois é só o resto (o sintoma) dessa experiência. O sintoma de uma queda. De um fracasso _ palavra que, ao contrário do senso comum, nada tem de negativa.

 Por isso, empurrado por Duras, afirmo a positividade do fracasso. Chega de
vencedores: quero saber dos vencidos. Eles sim _ em vez de adornos, comendas, ou perucas _ carregam em seus corpos as marcas (as feridas) de uma experiência. Dali, sim, pode sair algo que não esperamos. Algo que não existia. Pode surgir o novo. Duras me leva a pensar que escrever é uma espécie de derrota. Por isso, talvez, os escritores sejam vistos, no fundo (e afora todo o glamour de mercado) com grande desconfiança. O que fazem esses caras que passam anos a fio trancados, sozinhos, em seus escritórios? Em que eles tantam pensam e por que, enquanto pensam, não gostam de falar do que pensam? O que afinal eles escondem? O que querem da vida? Será que só escrevem porque, no fundo, não sabem fazer mais nada? Que só escrevem porque são fracassados?

Creio, por isso mesmo, que a literatura amplia nossa visão do humano. Isso não
signfica dizer, porém, que a embeleza, ou realça. Penso em Nelson Rodrigues, que falava de seu "teatro desagradável". Dizia Nelson: "a verdadeira apoteose é a vaia". A longa e louca vaia que recebeu na estréia de "Vestido de noiva", em vez de abatê-lo, o energizou. Estranhos seres esses escritores, que tiram sua força da derrota. Que se alimentam das próprias feridas. Nelson sempre lutou contra a unanimidade e o aplauso histérico. Ficou abatido quando, na estréia em São Paulo de "A última virgem", a platéia não o vaiou. Compreendia a potência do fracasso. Mais que isso: fazia do fracasso a sua fé. Um dia, contou em uma crônica célebre, um repórter lhe perguntou: "Você se considera realizado?" Não vacilou em responder: "Sou um fracassado". Falava de uma ferida (um sintoma) que nosso século encobre com o manto brilhante das medalhas. Os escritores dela fazem bem outra coisa. E que coisa!


José Castello -Jornalista e escritor, colunista do caderno Prosa, de O Globo, autor de "Vinicius de Moraes: O poeta da paixão" (Companhia das Letras, 1993), "Inventário das sombras" (Record, 1999) e "A literatura na poltrona" (Record, 2007), além de "Ribamar" (Bertrand Brasil, 2010, prêmio Jabuti de melhor romance de 2011)

2 comentários

Jane Eyre Uchôa disse...

Realmente a vida contém fracassos, faz parte, é necessário, e é inevitável por muitas vezes. Este exemplo do escritor que rasga seus rascunhos demonstra que também rasgamos outros rascunhos. Relacionamentos acabados, desfeitos, carreiras mal sucedidas ou ainda profissões exercidas sem amor, tempo desprendido em certas coisas que nunca tem retorno. Todos os fracassos concorrem para algo melhor, sim com certeza, a experiência que fica alicerça algo mais a frente, algo que não sabemos de onde vem, nem pra onde vai mas que precisará de sua experiência anterior para ter sucesso. O sucesso proveniente do fracasso. Parabéns pela sua reflexão.

Betty Badaui disse...

Si pudiéramos despejarnos del temor al fracaso y utilizar tiempo, esfuerzo y ganas en lo que hacemos, disfrutaríamos y me joraríamos nuestras tareas, al fin de cuentas en el recorrido de la vida las opiniones cambian y las secuencias también.
Betty Badaui